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sexta-feira, 22 de março de 2013

Arte românica e vinho na Ribeira Sacra (Galiza)

Igreja de São Vicente de Pombeiro (Foto Alberto López)
A Ribeira Sacra é uma região histórica situada no sul da província de Lugo e o norte da província de Ourense, bem conhecida pela sua importância no mundo do vinho. Neste território, ao redor da confluência dos rios Minho e Sil, está estabelecida uma das cinco denominações de origem de vinhos galegos, que nos últimos anos goza de uma celebridade crescente. Mas a Ribeira Sacra também é conhecida por possuir a maior concentração de arte românica da Galiza. Nesta região há mais de uma centena de igrejas que conservam a sua estrutura românica original em maior ou menor grau. Todos esses templos fizeram parte de mosteiros medievais que desapareceram em grande parte e cujas origens remontam à Alta Idade Média. Apenas o mosteiro de Santa Maria de Ferreira, na vila de Pantón, continua a ser habitado por uma comunidade de freiras da ordem beneditina.

Igreja de Atán (Foto Alberto López)
  A história desses mosteiros está intimamente relacionada com o desenvolvimento da viticultura, que foi durante a Idade Média um recurso econômico de primeira importância nestas terras. Uma tradição local atribui ao Império Romano a origem da produção dos vinhos na região. Ainda é comum ouvir-se dizer que os vinhos elaborados aqui eram enviados a Roma e servidos na mesa dos Césares. No entanto, apesar dessa arraigada crença, não há nenhuma prova histórica ou arqueológica de que nesta região se produzisse vinho na época romana, nem muito menos de que esse vinho fosse exportado para a península itálica. O mais antigo testemunho histórico conhecido sobre a viticultura na Ribeira Sacra é um documento datado do ano 816 no mosteiro de Santo Estevo de Atán, no concelho de Pantón.


Igreja de Ribas de Minho (Foto Alberto López)
  Uma outra crença muito arraigada atribui o nome da Ribeira Sacra à presença dos mosteiros que existiram durante séculos nas margens do Sil e Minho. Porém, segundo o filólogo e historiador galego Manuel Vidán Torreira, a origem do topônimo tem uma explicação muito diferente. O mais antigo documento histórico que contém esse nome é a carta de fundação do mosteiro de Montederramo (datada de agosto de 1124 na vila de Alhariz, na atual província de Ourense, e assinada por Teresa de Leão, mãe de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal), onde aparece a frase: in locum qui dicitur [no local que é chamado de] Rivoira Sacrata. O cronista beneditino castelhano Antonio de Yepes (morto em 1618), ao transcrever esse documento, creu que as palavras Rivoira Sacrata se referiam às margens do rio Sil. Vidán Torreira frisa que a palavra rivoira (ou rovoyra, como é mencionada em outros textos da época, do latim robur) significa carvalho ou carvalhal na língua medieval galego-portuguesa. Antonio de Yepes entendeu equivocadamente que o antigo documento falava de uma «ribeira sagrada» (quando na verdade fala de uma «árvore sagrada» ou de uma «floresta sagrada») e o erro foi repetido mais tarde por muitos outros, originando o nome que perdura até hoje.

Vinhas em terraços em Sober (Foto Alberto López)
  Em qualquer caso, é verdade que na região houve muitas comunidades monásticas, algumas deles muito poderosas, como a do convento beneditino de Santo Estevo de Ribas de Sil (no atual concelho de Nogueira de Ramuim), hoje transformado numa pousada de luxo. Também está fora de dúvida que os monges promoveram o cultivo das videiras nas margens íngremes do Sil e do Minho, dando origem à espetacular paisagem de vinhas plantadas em terraços ou socalcos que caracteriza a Ribeira Sacra. Uma paisagem que, nas palavras do escritor e geógrafo galego Ramón Otero Pedrayo, foi trabalhada de um modo «inconscientemente artístico». Porém, os dados históricos conhecidos ainda não permitem determinar com exatidão quando começou a se praticar na região este tipo de viticultura.

Igreja de Santo Estevo de Ribas de Minho (Foto Alberto López)
 Os grandes benefícios do comércio do vinho explicam a abundância e a riqueza artística e arquitetônica dos monumentos românicos deste território, onde há igrejas, como a de Santo Estevo de Ribas do Minho (concelho do Savinhão), de umas dimensões insólitas para uma pequena povoação rural. Na maioria dos casos, trata-se de um estilo românico tardio e já muito maduro. Algumas dessas igrejas mostram uma clara influência da escola surgida em torno do famoso Mestre Mateus, o criador do Pórtico da Glória da Catedral de Santiago de Compostela. Estudos recentes sugerem que uma oficina formada por antigos discípulos de Mateus se estabeleceu no curso médio do Minho depois de terminar a construção da catedral (por volta do ano 1210), levantando primeiramente a monumental igreja de Portomarín, no extremo norte da Ribeira Sacra e à beira do Caminho de Santiago. A marca estilística dessa oficina deixa-se ver em outros templos construídos mais tarde na mesma área geográfica.

TV / Vídeo  
O património românico da Ribeira Sacra é apresentado em um episódio da série de documentários Las claves del románico, da televisão pública espanhola TVE-La 2. Um vídeo realizado pela Deputação Provincial de Lugo mostra algumas igrejas do concelho do Savinhão (em galego).


Livros
Em tempos recentes foi publicado um guia em espanhol, Cuaderno del románico de la Ribeira Sacra, de Francisco Ruiz Aldereguía, que descreve numerosas igrejas e várias rotas para as visitar. O complexo simbolismo religioso destes monumentos (especialmente das suas esculturas) é analisado pelo escritor e historiador Xosé Lois Garcia em seus livros Simbologia do românico de Pantón, Simbologia do românico de Sober e Simbologia do românico de Chantada (em galego). A historiadora Sonia Fernández estuda em sua obra San Esteban de Ribas de Miño: los talleres de filiación mateana (em espanhol) a relação da arte românica da Ribeira Sacra com a escola compostelana de Mateus. Há também informações sobre o património românico da zona nos livros Ribeira Sacra. Guía práctica, de Manuel Garrido (com edições em espanhol e galego) e Orientarse pola Ribeira Sacra, de Gonzalo Xosé de Francisco da Rocha (em galego), este último de um caráter mais literário.
                                                             
Igreja de Bembibre, Taboada (Foto A. López)
Sítios eletrônicos
Um mapa editado pelo Ecomuseu de Arxeriz indica os principais pontos de interesse deste grande conjunto monumental. A associação cultural Colado do Vento publicou um guia do património românico do concelho de Sober (em galego). Outra associação, Amigos do Românico da Comarca de Chantada, apresenta em seu site uma galeria de fotos das igrejas românicas dos concelhos de Chantada, Taboada e Carvalhedo. Neste site pode ver-se um calendário com imagens de igrejas e mosteiros da Ribeira Sacra da província de Ourense, editado pela associação O Sorriso de Daniel. O portal Arteguias.com dedica um pequeno espaço a este patrimônio (em espanhol). O portal Círculo Románico apresenta imagens das igrejas de Santo Estevo de Chouzán, São Miguel de Eiré, Santa Maria de Ferreira, São Paio de Diomondi, São Lourenço de Fión, São Vicente de Pombeiro, São João de Portomarim, Taboada dos Freires, São Facundo de Ribas de Minho, Santo Estevo de Ribas de Sil e Santa Cristina de Ribas de Sil. A sociedade pública Turgalicia oferece em seu site uma visita virtual à igreja rupestre do mosteiro de São Pedro de Rocas (concelho de Esgos), uma das fundações monásticas mais antigas da Ribeira Sacra e de toda a Europa, cuja origem remonta ao século VI.

Igreja de Nogueira de Minho, Chantada (Foto Alberto López)
Museus
O Centro do Vinho da Ribeira Sacra (no concelho de Monforte de Lemos) acolhe uma exposição permanente sobre a história da viticultura na região. O Ecomuseu de Arxeriz (concelho do Savinhão) dedica uma seção às tradições vinícolas da Ribeira Sacra. O museu de etnografia do concelho de Quiroga expõe uma coleção de antigos utensílios relacionados com a elaboração do vinho. 
 
Igreja de São João da Cova (Foto Alberto López)

Rotas turísticas
A empresa Maisqueromanico oferece visitas guiadas a estes monumentos, com serviço em várias línguas. Na  região uma Rota do Vinho que compreende adegas, hospedagens e outros estabelecimentos.

sexta-feira, 15 de março de 2013

"Puerto de Hambre" (1972 - 1973) : Sarmiento de Gamboa numa banda desenhada chilena

  
   Em dezembro de 1972 e janeiro de 1973, o desenhista, ilustrador e roteirista chileno Luis Ruiz-Tagle publicou na revista Mampato a banda desenhada Puerto de Hambre, que relata a falida tentativa de colonização do estreito de Magalhães empreendida pelo império espanhol no último quartel do século XVI. A obra fazia parte de série Páginas brillantes de nuestra historia, que apareceu na dita revista a partir de abril de 1972. Ruiz-Tagle recriou também este episódio histórico noutra série intitulada Historias magallánicas, publicada pelo diário El Mercurio em 1980.



   Na história narrada nestas séries em quadrinhos teve um papel de destaque o navegador, explorador, cosmógrafo e cronista galego Pedro Sarmiento de Gamboa (Pontevedra 1532 - Lisboa 1592), pouco lembrado hoje no seu país de origem, embora com alguma exceção. Sarmiento já explorara a região magalhânica entre 1579 e 1580, partindo do porto peruano de El Callao, à frente de uma expedição que tinha por fim encontrar e capturar o corsário inglês Francis Drake, cujas incursões na América do Sul inquietavam as autoridades coloniais espanholas. Dessa viagem ficou um notável relatório que não seria publicado até 1768. Nessa altura, Sarmiento contava com uma longa experiência como navegador. Em 1567 participara na expedição ao Pacífico Sul comandada por Álvaro de Mendaña que resultou na descoberta das Ilhas Salomão. Anteriormente morara no México e no Peru, onde por encomenda do vice-rei Francisco de Toledo escreveu uma crónica do império inca (Historia índica) que figura entre mais importantes fontes de informação histórica sobre a América pré-colombiana

  Receando que o reino da Grã-Bretanha alcançasse a estabelecer bases permanentes na América do Sul e a assenhorear-se da passagem do Atlântico ao Pacífico, a coroa espanhola resolveu fortificar o estreito de Magalhães e encomendou a Sarmiento de Gamboa a missão de criar uma colónia na região austral. Com esse objectivo, uma frota de 23 navios com cerca de 2.500 pessoas a bordo partiu em setembro de 1581 do porto de Sanlúcar de Barrameda. A expedição teve que arrostar grandes dificuldades logo desde o início. Tempestades e pestes dizimaram a frota durante a travessia e os sobreviventes ficaram isolados por muito tempo na costa do Brasil.


   A frota chegou finalmente ao estreito de Magalhães em fevereiro de 1584. Na altura já restavam só cinco navios e um deles naufragou antes de tocar terra, perecendo 583 pessoas de todas as idades. Uma tempestade afastou depois outros barcos, que empreenderam o retorno à Península Ibérica. Os colonos recém desembarcados dispunham apenas de uma nau, a Santa Maria de Castro
   
  Em meio de grandes penalidades, os sobreviventes da frota fundaram as povoações de Nombre de Jesús (perto do cabo Vírgenes, na ponta oriental do estreito) e Rey Don Felipe (na baía San Blas, a poucos quilómetros da atual cidade chilena de Punta Arenas), habitadas ao todo por 338 homens, mulheres e crianças. Foram as primeiras colónias europeias no extremo austral do continente. Mas as circunstâncias em que se levou a cabo a fundação, a escassez dos recursos  com que contavam os moradores e isolamento em que se encontravam fizeram temer pelo seu futuro já desde o primeiro momento.

  Sarmiento rumou para o Brasil à procura de víveres e reforços para as colónias recém criadas, mas as tempestades impediram-no de regressar ao estreito nas duas ocasiões em que o intentou. Na primeira tentativa, a nau Santa Maria afundou-se com toda a sua carga. Finalmente, em junho de 1586, decidiu retornar  à Espanha em demanda de auxílio. Na travessia foi apresado pela frota de Walter Raleigh e conduzido à Inglaterra. Após de muito porfiar, convenceu a rainha Isabel I para que lhe permitisse voltar à Espanha portando uma mensagem para Filipe II, mas quando atravessava a França foi feito prisioneiro pelos huguenotes, que pediram por ele um pesado resgate. Não foi libertado até dezembro de 1589.

     Durante esse tempo, os colonos do estreito ficaram abandonados à sua sorte. Desprovidos de ajuda exterior, contando com meios sumamente precários, cercados de umas terras e um clima muito diferentes dos que conheciam, não foram capazes de desenvolver cultivos nem puderam recorrer com eficácia à pesca ou à caça para garantir-se a subsistência. Careciam dos conhecimentos e das técnicas desenvolvidos durante milhares de anos pelos indígenas para sobreviver naquela remota região. A fome começou a fazer estragos entre eles.


    Os moradores de Nombre de Jesús empreenderam uma marcha desesperada por terra para alcançar a outra povoação, supondo que ali conseguiriam mais víveres, mas foram morrendo quase todos de inanição e esgotamento ao longo do caminho.



   Em janeiro de 1587, o corsário inglês Thomas Cavendish fundeou na baía San Blas para prover-se de água e lenha. Na cólonia de Rey Don Felipe só havia um punhado de sobreviventes exaustos e dezenas de cadáveres insepultos. Espantado perante o macabro panorama, Cavendish deu ao lugar o nome de Port Famine ou Porto da Fome, que conservou até hoje. 



 


  Depois da desgraçada tentativa de colonização -também narrada pelo escritor chileno Reinaldo Lomboy no romance histórico Puerto del Hambre-, os europeus desistiram por muito tempo de se assentarem no inóspito extremo sul do continente. A região não foi realmente colonizada até o século XIX, quando Chile e Argentina já eram estados independentes. Começou então o declínio dos antigos povos fueguinos, que foram levados à beira da extinção no decurso de poucos decénios. 







sexta-feira, 8 de março de 2013

«Tempo», imagens de um ano inteiro na vida da Serra do Courel



  
   

     Em 23 de novembro de 2012 veio ao mundo Clara, o primeiro bebê nascido na aldeia de Froxán (Serra do Courel, Galiza) em 28 anos. Por esses dias começou a rodagem de Tempo, um documentário do fotógrafo e realizador audiovisual Manuel Valcárcel que continuará a ser filmado durante os próximos meses. O primeiro ano de vida da criança é o fio condutor do filme, que pretende recolher tudo quanto vai acontecendo no seu entorno mais próximo. O processo de produção poderia concluir no verão de 2014. Mas uma parte do trabalho feito até agora pode ser vista no site www.tempodocumental.com, inaugurado em 7 de março. O que se oferece no site é um teaser que condensa as imagens gravadas durante o primeiro trimestre de filmagem. Nos próximos meses irão sendo publicados outros resumos à medida que o projecto for avançando.
       
    Segundo o diretor, o eixo argumental de Tempo é o contraste entre a vida e a morte: «De um lado está a menina, que representa a vida que começa e que é como um símbolo de esperança e de futuro, e do outro lado está a parte da morte, ou seja, o envelhecimento e a despopulação do mundo rural e a degradação ambiental que sofre este território». E como testemunha de todos estes processos, o mundo natural da Serra do Courel, que ocupará um importante espaço na história.
    
     Valcárcel aponta por outro lado que o documentário não conterá explicações nem entrevistas, pois pretende que as imagens falem por si mesmas: «Não quis fazer uma denúncia direta dos problemas do mundo rural, mas mostrar as pessoas na a sua vida cotidiana e o mundo em que vivem, sem acrescentar nenhum comentário da nossa parte. Haverá conversas, mas serão as que mantêm os moradores entre si, as conversas que se podem ouvir num dia qualquer».


    O diretor do filme espera que Tempo seja compreensível para espectadores de qualquer país e qualquer ambiente cultural, «porque o que se vai ver são coisas que acontecem em todo o mundo, embora a paisagem e alguns detalhes sejam diferentes». Tal como foi concebido o projeto, o processo de filmagem dependerá muito do que for acontecendo nos próximos meses neste território, pois os autores querem refletir tudo quanto condiciona a vida diária de seus habitantes. «Já temos previsto rodar algumas coisas, mas outras são totalmente fortuítas e não dependem de nós, como as nevadas, que neste inverno foram muito intensas na serra», diz Valcarce. Ou como o temporal Gong, que em janeiro passado provocou um desabamento de terras e cortou durante quase 24 horas a principal estrada do Courel, um episódio que também aparecerá no filme.


   A captura de imagens é feita com uma câmera reflex digital. Na filmagem utiliza-se também um ortocóptero fornecido pela empresa Aeromedia que recolhe a vista de pássaro as espetaculares paisagens do Courel. Os autores recorrem ao time-lapse para mostrar as mudanças que experimenta o meio natural da serra ao longo das estações e servem-se com frequência do travelling para acentuar a sensação de movimento e conseguir que «as paisagens não sejam uma coleção de fotografias». A equipe técnica reduz-se ao próprio diretor, a assistente de direção Sara Álvarez, o ténico de som Alejandro García e Alejandro González, que compõe a trilha sonora, mas contam com o apoio de diversos parceiros.


  Publicado originalmente em La Voz de Galicia, 7 de março de 2013


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os condes de Lemos e a Cidade do Sol. O filósofo Tommaso Campanella, prisioneiro dos vice-reis galegos em Nápoles




Em agosto de 1599 foi descoberta e abortada na Calábria uma conspiração que visava acabar com o domínio espanhol na Itália meridional. Não foi essa a primeira nem a última vez que se produziu uma tentativa de sublevação nos territórios italianos sujeitos à coroa de Espanha. Em 1523, 1533, 1547 e 1585 já surgiram na Sicília e em Nápoles importantes movimentos insurrecionais. No século XVI, os domínios espanhóis na Itália não eram nenhum exemplo de bem-estar e bom governo. A rapacidade dos governantes, um sistema fiscal feroz e o estado de abandono da agricultura, a indústria e o comércio provocavam um descontentamento popular incessante.
  A desocupação e a miséria propiciaram um enorme incremento da delinquência e o banditismo, sobretudo no sul do país: já estava nos seus inícios a longa e lúgubre história das máfias de Nápoles, a Calábria e a Sicília. A isto sumavam-se as tropelias da Inquisição, introduzida pelas autoridades espanholas, e a violência exercida contra a população pelos terços imperiais, que criam ter tudo permitido na Itália.

Tommaso Campanella, pelo pintor calabrês Mike Arruzza

    Todas estas circunstâncias concorreram para alimentar a conjuração de 1599, entre cujos responsáveis figurava um personagem que chegaria a ser conhecido universalmente: o monge dominicano e filósofo Tommaso Campanella. Nascido em 1568 numa humilde família da vila calabresa de Stilo, Campanella dera desde muito novo mostras da sua poderosa capacidade intelectual. Influído pelo pensador reformista Bernardino Telesio, abandonou o seu convento e publicou uma obra, Philosophia sensibus demonstrata, que foi condenada pela Inquisição. Procurou refúgio em Florência e Pádua, proclamou a necessidade de uma profunda transformação social, política e religiosa e finalmente retornou à Calábria. Lá participou nos preparativos de uma insurreição que pretendia instaurar um regime republicano e igualitário nas terras submetidas à Espanha e talvez também no resto da Itália. A sublevação, cuidadosamente planificada, não chegou a estourar porque dois denunciantes delataram a existência do movimento às autoridades imperiais, que desataram uma repressão atroz. Muitos dos conjurados foram levados a Nápoles a bordo de quatro galés. Dois prisioneiros foram despedaçados vivos durante a travessia com o fim de aterrorizar os outros e forçá-los a confessar. Campanella eludiu a princípio a perseguição, mas foi apresado algum tempo depois quando tentava embarcar para a Sicília. Conduzido a Nápoles, foi torturado durante meses enquanto era julgado por sedição e heresia. Para evitar ser justiçado simulou ter enlouquecido (as leis da época não permitiam executar os dementes) e embora não alcançasse a iludir completamente os juízes, conseguiu ver comutada a pena capital pela prisão perpétua.

  Campanella passou no cárcere os seguintes vinte e seis anos. Durante esse tempo escreveu algumas das suas obras mais conhecidas, entre as quais sobressai A cidade do Sol, descrição de uma sociedade ideal considerada como um precedente do socialismo utópico, ao igual que a República de Platão e a Utopia de Thomas More. Há quem acredite que A cidade do Sol foi uma das fontes de inspiração das comunidades igualitárias criadas pelos missionários jesuítas entre os povos indígenas do Paraguai. Em todo o caso, a obra teve uma influência considerável no pensamento filosófico e político das seguintes centúrias. Outro dos seus livros é uma Apologia de Galiléu na qual defendeu os méritos do grande científico, perseguido na altura pela Inquisição, e avogou pelos direitos da ciência face à hegemonia do poder religioso. O filósofo acabou por saír do cárcere mercê à intercessão do papa Urbano VIII, mas teve que abandonar a Itália por estar um sobrinho seu implicado numa nova conjura contra o domínio espanhol. Viveu os seus últimos anos na França, onde foi muito bem acolhido pelo rei Luís XIII e o cardeal Richelieu, os quais não perderam a ocasião de favorecer um sábio já famoso em toda a Europa que era perseguido pelos seus adversários, os monarcas espanhóis.


Busto do conde Pedro Fernández de Castro em Monforte
  Que relação tem esta história com Monforte de Lemos? Pelo menos uma pouca. Quando Campanella e os seus companheiros organizavam o frustrado levantamento de 1599, a governação dos territórios espanhóis da Itália meridional estava em mãos de um monfortino, Fernando Ruiz de Castro, vice-rei de Nápoles e sexto conde de Lemos. Foi este personagem quem dirigiu a repressão contra os rebeldes calabreses e quem ordenou encarcerar o monge filósofo. Campanella permanecia em prisão quando o sétimo conde de Lemos, Pedro Fernandez de Castro Andrade e Portugal, passou a ser também vice-rei de Nápoles, em 1610. Apesar da sua conhecida afeição pelas letras (foi mecenas, como é bem sabido, de Cervantes, Góngora, Quevedo, Lope de Vega e os irmãos Argensola, entre outros), o conde monfortino não achou conveniente indultar o pensador, quem continuava preso quando Fernandez de Castro terminou o seu mandato na Itália em 1616. Quem sabe em quem estaria a pensar Tommaso Campanella quando escreveu estas palavras num poema composto na sua longa estada em prisão: Habitantes do mundo, volvei os olhos para a inteligência suprema e vereis o abaixamento a que vos reduziu a tirania brutal revestida com o belo manto da nobreza e o valor.


     Publicado originalmente no programa de atos das festas patronais de Monforte de Lemos, agosto 2004.