A igreja de
Santo Estevo de Atán, no concelho de
Pantón, faz parte do vasto património
românico da
Ribeira Sacra. Pertenceu a um mosteiro desaparecido que já
é mencionado em fontes documentais do século IX. Um desses documentos, datado do ano 816, contém a mais antiga referência conhecida sobre a
viticultura na região. O edifício sofreu numerosas reformas e alterações, e da velha fábrica românica só restam o portal e um conjunto de
mísulas esculpidas. Conserva também alguns elementos de origem pré-românica. Na fachada sul da igreja chama a atenção uma peculiar figura lavrada numa mísula, uma cabeça humana que parece estar a sorver vinho de uma pipa. Esculturas muito similares a esta podem ver-se em diversas igrejas românicas do norte da
Península Ibérica. Essas figuras foram denominadas
bebedores ou
bêbedos e interpretadas como sátiras da embriaguez e da gula. Porém, segundo um estudo recente, tais esculturas não têm nenhuma intenção moralizadora. São representações reais de um antigo instrumento musical, um tipo de
aerofone que deixou muito poucas pegadas históricas.
O instrumento, totalmente desconhecido até há poucos anos, foi identificado pelo historiador e musicólogo
Faustino Porras Robles, especialista em representações musicais na arte românica, quem publicou em 2007 um
trabalho sobre este assunto na
Revista de Folklore que edita a
Fundação Joaquín Díaz. Porras Robles deu a este instrumento —cujo nome original se desconhece— a denominação de
dólio, do latim
dolium (pipa ou tonel). O pesquisador descarta a possibilidade de os objectos representados nestas esculturas serem cubas de vinho e frisa que em todos os casos estão situados por baixo da figura humana. «Se se tratasse de uma imagem carregada de conteúdo simbólico e finalidade moralizante, o tonel situar-se-ia sobre as costas do personagem para apresentá-lo como a pesada carga que deve suportar aquele que não domina as suas fraquezas», aponta. Por outro lado, indica que este «tonel» apresenta amiúde uma feição cilíndrica, mas em outros casos tem forma de elipse ou de prisma, e além disso aparece sempre representado com um grande bico —por onde supostamente «bebe» o personagem— que não desempenharia nenhuma função em um tonel real. Estas figuras, aliás, aparecem em certos lugares acompanhadas de outras que indubitavelmente representam músicos e dançarinos.
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Interior da igreja de Atán (Foto: Carlos Rueda) |
As representações iconográficas do dólio estão espalhadas por todo o norte da Península. No seu trabalho de 2007, Faustino Porras Robles menciona as igrejas de
Monasterio de Rodilla,
Miñón,
Escalada,
Moarves de Ojeda (
Castela e Leão), S. Romão de Lousada,
Sta. Marinha de Esposende,
S. Tomé de Serantes,
Santiago de Bembrive,
S. Martinho de Moanha,
S. Pedro de Rebón, a freguesia de Santiago na cidade da
Corunha e a
catedral de Lugo (
Galiza). Em um novo
artigo publicado em fevereiro de 2013 alarga a listagem, indicando também a presença do instrumento em esculturas medievais de
El Pla de Santa Maria (
Catalunha),
Artze,
Oloritz,
Vadoluengo (
Navarra),
Canales de la Sierra (
La Rioja),
Los Barrios de la Bureba,
Navas de Bureba,
Tablada de Villadiego,
Vallejo de Mena,
Villamayor de Treviño,
Ventosilla (
Castela e Leão), Santo Estevo de Atán e
Santiago de Compostela (Galiza).
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Organistrum (Wikimedia Commons) |
Baseando-se na cronologia das representações plásticas do dólio, Porras Robles considera que o instrumento foi usado sobretudo na segunda metade do século XII, ainda que parece ter pervivido até à
Baixa Idade Média. O exemplo mais tardio que se conhece é uma escultura da
Casa Gótica de Santiago de Compostela, do século XIV. O investigador fez também uma estimação acerca do possível tamanho desses instrumentos, calculando que poderiam medir entre 45 e 50 centímetros os de maior volume (os mais frequentes) e arredor de 30 centímetros os mais pequenos. Analisando a iconografia, supõe que era um aerofone de tom grave e pouca variedade sonora, cuja função seria a
de enriquecer melodias executadas com outros instrumentos, contribuindo para o desenvolvimento da
polifonia que estava em auge nesse período histórico. Na maioria dos casos, o dólio aparece integrado em
cenas jogralescas, com outros músicos que tocam instrumentos de corda e de sopro, com dançarinas, animais amestrados e contorcionistas, pelo que cabe inferir que foi utilizado principalmente em contextos populares. A causa provável da desaparição do dólio —acrescenta o autor do estudo— seria o desenvolvimento de outros instrumentos de técnica mais evoluída e com possibilidades protopolifónicas, como a
gaita, o
alboque ou o
organistrum (predecessor da
sanfona), que tornariam desnecessário o seu uso.