terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Reconstituição das rotas dos nómades do Paleolítico no vale de Lemos (Galiza)


Biface acheulense de Monforte (foto Alberto López)
Na primavera boreal de 2006 começou a se desenvolver o projeto arqueológico Ocupações humanas durante o Pleistoceno da bacia média do Minho, o programa de investigação das jazidas do Paleolítico mais longo e sistemático empreendido até agora na Galiza. O projeto é coordenado pela Universidade de Santiago de Compostela e conta com a colaboração de cientistas do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e outras instituições. O plano arqueológico foi posto em andamento depois de o pesquisador amador José Antonio Peña Alonso, vizinho de Monforte de Lemos, ter descoberto nos arredores da cidade um grande número de artefatos líticos espalhados pelo campo em diferentes locais. Os primeiros trabalhos enquadrados neste programa consistiram em prospecções arqueológicas de superfície que tinham por objetivo localizar jazidas ao ar livre na depressão de Monforte, a área mais baixa do vale de Lemos. As pesquisas estenderam-se  também para algumas áreas dos municípios vizinhos de Sober, O Savinhão e Bóveda.


Sondagem arqueológica em Monforte (foto Alberto López - La Voz de Galicia)
Nos anos seguintes, em uma série de prospecções e sondagens, os arqueólogos descobriram numerosos conjuntos de indústrias líticas em cerca de uma centena de locais espalhados por todo o território do vale de Lemos, principalmente na depressão de Monforte. Entre estes materiais há indústrias pertencentes aos três grandes períodos culturais do Paleolítico: Inferior, Médio e Superior. Estes achados constituem a maior concentração de sítios arqueológicos de diferentes períodos da pré-história remota encontrada até agora na Galiza e também a mais ampla seqüência de povoamentos paleolíticos ao ar livre conhecida no noroeste da Ibéria.

Principais vias de trânsito durante o Paleolítico no noroeste ibérico (fonte: To the West of Spanish Cantabria)
 As pesquisas realizadas na área desde 2006 sugerem que a presença dessas jazidas está relacionada com o papel fulcral que parece ter desempenhado o vale de Lemos nos movimentos dos grupos nômades de caçadores-coletores do Paleolítico no noroeste da península. Um estudo publicado em 2011 no livro To the West of Spanish Cantabria apresenta uma hipótese segundo a qual este território constituiu um importante cruzamento de caminhos durante o Pleistoceno Médio e o Pleistoceno Superior. Conforme indicam os estudos realizados com ferramentas SIG sobre as rotas naturais com menor custo do noroeste da península, a depressão de Monforte está estrategicamente localizada na entrada dos corredores provenientes da parte ocidental da Meseta Central ibérica e funciona como um ponto nodal a partir do qual múltiplos caminhos divergem em diferentes direções. Esta condição de encruzilhada explica-se pela singular situação geográfica do território. De um lado, o vale de Lemos, com uma altitude média de 290 metros acima do nível do mar, está emoldurado pelos principais sistemas fluviais do noroeste ibérico, os dos rios Minho e Sil, que em grande parte condicionam as vias naturais de trânsito em toda a região. Ambos os rios fluem ao longo de vales profundos que seguem o curso de antigas falhas tectônicas abertas em áreas onde predominam as superfícies de granito e que impedem o acesso às zonas ocidental e setentrional do território galego.
 
Biface da Piteira (Museu Arq. de Ourense)


O vale do Minho funciona como um caminho natural que conecta diretamente esta região do interior com a costa do Oceano Atlântico. Seguindo o curso do rio, em torno da cidade de Ourense, existe um notável conjunto de jazidas do Paleolítico Inferior ao ar livre, situadas nas localidades de Pazos, A Piteira e A Chaira. Outras evidências arqueológicas deste período foram descobertas em torno do curso baixo do Minho, no sudoeste da Galiza, nas jazidas de Porto Maior e Gândaras de Budinho e em alguns terraços fluviais perto da foz do rio. Também foi registada a presença de indústrias do Paleolítico na costa de Portugal –no concelho de Caminha–, muito perto desta zona. 



 
Prospecção arqueológica em Quiroga (foto Alberto López - La Voz de Galicia)
O vale do Sil é outro grande corredor que liga o interior da Galiza com a parte ocidental da Meseta Central. No setor oriental deste vale fluvial registaram-se alguns achados isolados de artefatos líticos, no concelho de Quiroga e na comarca de Valdeorras. Há também registros de indústrias do Paleolítico a oeste da Meseta, em diversas áreas localizadas ao longo desta via natural. Em jazidas superficiais sitas nos terraços fluviais do rio Bernesga foram encontrados artefatos que apresentam semelhanças com as indústrias do Paleolítico Inferior do vale de Lemos. O Sil constitui aliás uma importante barreira natural que corta o acesso às regiões ocidentais da Galiza, pois corre por canhões profundos em grande parte do seu curso. A área de confluência com o rio Lor –tributário do Sil– e a borda oriental do vale de Lemos, onde as encostas são muito menos pronunciadas, oferecem uma via alternativa que permite ultrapassar este obstáculo. Outro corredor natural sobe do Vale do Douro –em Portugal–, cruzando as depressões de Verim e Maceda, e permite atravessar o Sil por algumas passagens estratégicas situadas a sul de Monforte de Lemos.

Escavações na caverna da Valinha (foto César Llana)
Os pesquisadores apontam, além disso, que a depressão de Monforte está situada no limiar de um corredor formado por uma série de bacias de origem terciária que corre em direção norte-sul entre as serras orientais da Galiza e as peneplanícies graníticas do interior. Esta outra via natural conduz ao litoral do mar Cantábrico. Ao longo deste corredor encontram-se várias jazidas do Paleolítico Superior, entre as quais se destacam as do monte de Valverde (Monforte de Lemos) e da caverna da Valinha (concelho de Castroverde). Vestígios arqueológicos importantes do mesmo período também são conhecidos em vales próximos a este corredor natural, como as jazidas de Cova Eirós (concelho de Triacastela) e de alguns abrigos rochosos na zona do Valadouro. Na costa cantábrica existem diversas jazidas do Paleolítico que igualmente podem estar relacionadas com esta rota, como Louselas (concelho de Ribadeo, Galiza), Cabo Busto, Bañugues e Paredes (Astúrias). Outra via natural pode ter comunicado a depressão de Monforte com o vale do rio Ulha, passando pelo extremo norte da Serra do Faro. Porém, até agora só é conhecida uma jazida do Paleolítico Inferior que pode estar vinculada a este corredor. Foi descoberta em 2008 na aldeia de Pedras, localizada em uma pequena bacia do concelho do Savinhão, a dois quilômetros do curso do Minho.

Indústria lítica de Monforte (foto Alberto López - La Voz de Galicia)
Essa condição de encruzilhada do vale de Lemos parece ter persistido até nos períodos mais frios do Pleistoceno, quando grandes regiões da península e da Europa ficaram despovoadas. Estudos geomorfológicos e paleoclimáticos indicam que a depressão de Monforte e o vale do Sil, graças à sua baixa altitude, gozaram durante os períodos glaciais de umas condições climáticas menos rigorosas do que os territórios vizinhos, pelo qual poderiam ter servido como áreas de refúgio. A descoberta em Monforte de uma jazida do período Solutreano –a única conhecida até hoje na Galiza– prova que este território albergou grupos humanos durante o Último Máximo Glacial.
     A cronologia das ocupações humanas ao longo destas rotas naturais é por enquanto difícil de estabelecer, devido à falta de datações absolutas. Os vestígios arqueológicos encontrados nesses corredores são jazidas de superfície, descontextualizadas e desprovidas de fósseis, o que não permite realizar datações radiométricas. As únicas indústrias do Paleolítico Inferior similares às da depressão de Monforte que foi possível datar no norte da península foram descobertas na jazida de Trinchera Galería, na Serra de Atapuerca, e atribui-se-lhes uma antiguidade de perto de 450.000 anos.


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